O lançamento de O Monstro de Florença colocou novamente sob holofotes um dos maiores mistérios criminais da Itália. A minissérie, disponível na Netflix, intercala acontecimentos verídicos com cenas ficcionais que prendem o espectador do início ao fim.
Misturar realidade e dramaturgia sempre gera dúvidas. O que de fato ocorreu? Onde a produção decidiu usar criatividade? A equipe do 365 Filmes conferiu cada detalhe e reúne, a seguir, tudo que é verdade e o que foi inventado em O Monstro de Florença.
Casos reais: oito casais atacados entre 1968 e 1985
Antes de mais nada, é preciso reforçar que O Monstro de Florença existiu. Entre 1968 e 1985, 16 pessoas foram assassinadas em áreas rurais próximas a Florença. Quase todas as vítimas eram casais surpreendidos dentro de carros, em momentos de intimidade.
A repetição do modus operandi — tiros de pistola Beretta calibre .22, marca Winchester série H, seguida de mutilações em quatro mulheres — consolidou o criminoso como um dos serial killers mais temidos da Europa. A série menciona todas essas informações com exatidão, reproduzindo inclusive as datas dos crimes.
Investigação inicial: a Trilha Sarda e as prisões equivocadas
A primeira morte ligada oficialmente ao caso foi o duplo homicídio de Barbara Locci e Antonio Lo Bianco, em 1968. Nesse ponto, a narrativa da Netflix permanece fiel aos documentos: o marido de Barbara, Stefano Mele, virou o principal suspeito e chegou a confessar o crime, alegando ciúmes.
Quando Mele voltou atrás e apontou outros homens da comunidade sarda, nasceu a chamada Trilha Sarda. Francesco Vinci, Giovanni Mele e Piero Mucciarini foram presos, mas precisaram ser libertados após novos assassinatos ocorrerem enquanto estavam atrás das grades. A produção mostra esse vai-e-vem policial de maneira bastante próxima à realidade.
Foco nos erros da polícia
A série aproveita essas prisões equivocadas para evidenciar falhas de investigação, algo que os autos históricos confirmam. Falta de provas concretas, testemunhos frágeis e teorias contraditórias atrasaram por anos a caçada ao verdadeiro assassino.
Disputa judicial e queda das acusações contra Salvatore Vinci
Um dos capítulos mais tensos de O Monstro de Florença envolve o julgamento de Salvatore Vinci em 1988. Na vida real, ele foi levado ao tribunal após supostamente confessar o crime a Stefano Mele. Porém, durante a audiência, Mele declarou não se lembrar da tal confissão — e a acusação desmoronou.
Sem esse elo, o Ministério Público não conseguiu sustentar a tese de que Vinci era o Monstro. O réu foi absolvido por falta de provas e, logo depois, desapareceu da vida pública. Esses eventos são reproduzidos com rigor na obra, inclusive o detalhe de que, após a absolvição, nenhum novo assassinato do mesmo padrão foi registrado.
Cessação dos crimes: coincidência ou pista?
A minissérie sugere que o fim dos homicídios pode ter ligação direta com o sumiço de Vinci. Oficialmente, porém, as autoridades nunca confirmaram essa conexão. A produção usa o recurso como metáfora narrativa, não como conclusão definitiva.
Criatividade da série: relações íntimas e motivações não comprovadas
O roteiro introduz um suposto envolvimento sexual entre Salvatore Vinci e Stefano Mele, capaz de motivar chantagens e ciúmes contra Barbara Locci. Nenhum documento judicial comprova essa relação. Trata-se de licença poética baseada em depoimentos ambíguos, algo que o público deve encarar como hipótese dramática.
Da mesma forma, a série investe em diálogos que tentam explicar a brutalidade dos ferimentos nas mulheres, mas não há prova pericial que identifique a motivação exata do criminoso. São recursos para criar tensão e aprofundar personagens, comuns em produções true crime.
Imagem: Divulgação
Outros suspeitos que confundiram a polícia
Além de Salvatore Vinci, O Monstro de Florença menciona nomes reais como Pietro Pacciani, Mario Vanni, Giancarlo Lotti e Francesco Calamandrei. Todos chegaram a ser investigados em fases distintas. Pacciani, por exemplo, foi condenado em 1994, mas absolvido em segunda instância antes de um novo julgamento.
Nenhum suspeito, entretanto, foi ligado de maneira conclusiva a todos os assassinatos. Ao retratar essa sucessão de culpados provisórios, a obra mostra a sensação de impotência que marcou o trabalho policial, um retrato historicamente correto.
Fatos mantidos nos diálogos
Informações como datas de prisões, pareceres de juízes e perícias balísticas aparecem pontualmente nos episódios. Essa preocupação em citar documentos reais reforça a veracidade dos fatos básicos, mesmo quando o tom dramatúrgico esquenta.
Atmosfera da Itália rural e crítica social
Para além dos crimes, a série mergulha no clima da Toscana entre 1960 e 1980. Mulheres tinham pouca voz em áreas rurais, e a violência doméstica era frequentemente ignorada. Segundo o diretor Stefano Sollima, essa ambientação serve para lembrar que o horror não se resume ao assassino, mas a uma sociedade que tolerava agressões diárias.
A reconstituição do período — carros da época, cantinas à luz de velas, festas populares — recebe elogios de críticos e historiadores. É nesse contexto que O Monstro de Florença dialoga com temas atuais, como desigualdade de gênero e falhas institucionais.
Por que o pano de fundo importa?
Ao expor a misoginia enraizada, a produção sugere que a cultura machista colaborou para a impunidade do assassino. Embora essa análise social vá além dos autos judiciais, ela não altera os fatos centrais e ajuda o espectador a entender por que o caso permanece tão perturbador.
O que é fato e o que é ficção em O Monstro de Florença
Resumindo: a série acerta nos números de vítimas, no tipo de arma, nas datas dos homicídios e nos principais suspeitos investigados. Também mostra com fidelidade as reviravoltas judiciais, inclusive a confissão retratada de Mele que levou à absolvição de Vinci.
Por outro lado, motivação dos crimes, possíveis romances entre investigados e a ligação direta entre o desaparecimento de Salvatore Vinci e o fim dos assassinatos entram na categoria de ficção. São elementos narrativos construídos para dar ritmo e emoção a uma história real ainda sem solução.
Se você é fã de produções true crime e quer entender o limite entre documento e dramaturgia, vale conferir O Monstro de Florença na Netflix — sempre lembrando que nem tudo na tela saiu dos arquivos policiais.
