Quando A Mulher Rei estreou em 2022, muitos cinéfilos deixaram a sala de cinema perguntando-se se aquelas guerreiras indomáveis existiram de fato. A resposta é simples: sim, mas Hollywood temperou a narrativa com doses generosas de dramatização.
O longa estrelado por Viola Davis baseia-se em registros históricos do Reino do Daomé, atual Benin, onde um exército feminino impôs respeito durante boa parte do século XIX. A fascinação pelo tema impulsionou o sucesso global do filme e despertou a curiosidade do público do 365 Filmes.
Quem foram as Agojie, a tropa que inspirou A Mulher Rei
Conhecidas pelos europeus como Amazonas do Daomé, as Agojie formavam um contingente de até 6 mil combatentes no auge do poder do reino, por volta de 1840. Fontes da época relatam que essas mulheres saqueavam vilas inimigas durante a madrugada, capturavam prisioneiros e exibiam as cabeças de adversários abatidos como troféus de guerra.
Os relatos mais antigos indicam que a corporação começou a tomar forma ainda no século XVII, possivelmente sob o governo do rei Huegbadja ou da rainha Hangbe. No entanto, foi durante o reinado de Guezo (1818-1858) que o grupo atingiu sua chamada era dourada, período em que o roteiro de A Mulher Rei se concentra.
Estrutura militar rigorosa
As Agojie eram divididas em setores especializados: caçadoras de elefantes, arqueiras, espadachins e atiradoras. Cada divisão treinava técnicas distintas de combate, mas todas seguiam um código disciplinar rígido, que incluía celibato, vida dentro do palácio real e lealdade absoluta ao soberano.
Personagens do filme: entre fatos e ficção
Viola Davis interpreta Nanisca, general criada para o cinema, mas inspirada em nomes citados por viajantes do século XIX. Já Thuso Mbedu vive Nawi, cadete cuja existência histórica também aparece em diários coloniais, embora não haja confirmação de seus feitos específicos.
O rei Guezo, encarnado por John Boyega, é figura verídica. Ele libertou o Daomé da submissão ao Império Oyo em 1823 e investiu no fortalecimento da economia e das forças armadas. O roteiro aborda sua tensão interna entre manter o comércio de escravos ou migrar para a exploração de óleo de palma. De fato, em 1852, o monarca considerou abolir o tráfico de pessoas, pressionado pelo governo britânico, mas retomou a atividade pouco tempo depois por motivos financeiros.
Liberdades dramáticas
Embora a trama capture dilemas políticos da época, o tom heroico atribuído às guerreiras suaviza aspectos sombrios, como seu envolvimento direto na captura de escravos. Ainda assim, o filme oferece um retrato raro de mulheres negras africanas como estrategistas de guerra no cinema mainstream.
Recrutamento e rituais de iniciação
Muitas Agojie eram alistadas ainda crianças, sobretudo entre órfãs e escravizadas. O treinamento incluía escaladas, corridas de resistência e exercícios com armas frias e de fogo. Um relato francês descreve uma jovem chamada Nanisca decapitando um prisioneiro e bebendo seu sangue durante o rito de passagem, prática que demonstra o nível de brutalidade enfrentado pelas recrutas.
Imagem: Reprodução
O grupo também possuía status semidivino. Conhecidas como ahosi (esposas do rei), carregavam a simbologia de casamento com o soberano, apesar de raramente manterem relações com ele. Homens comuns não podiam cruzar os aposentos femininos após o pôr do sol, reforçando a aura sagrada em torno das guerreiras.
Confrontos históricos e declínio do Daomé
No século XIX, as Agojie combateram reinos vizinhos, como os Egba, e mais tarde enfrentaram tropas francesas durante a expansão colonial. Nas Guerras Franco-Daomeanas (1890-1894), cerca de 400 combatentes femininas foram enviadas para a linha de frente; quase todas morreram em batalha, lutando com lanças e mosquetes antigos contra armamentos modernos.
A queda de Abomei, capital do reino, em 1894 marcou o fim da soberania do Daomé. As sobreviventes foram dispersas: algumas exiladas, outras exibidas em feiras humanas na Europa e nos Estados Unidos, exemplo cruel da desumanização colonial.
Última guerreira conhecida
Nawi, apontada como a última Agojie com experiência em combate, faleceu em 1979, possivelmente com mais de 100 anos. Apesar da extinção do exército, descendentes preservam rituais ligados à bravura dessas mulheres, reforçando seu legado na memória coletiva africana.
Impacto cultural e resgate histórico
Pesquisadores contemporâneos defendem que a colonização europeia apagou parte do protagonismo feminino em sociedades pré-coloniais da África Ocidental. Para o historiador Leonard Wantchekon, de Princeton, a presença das Agojie comprova que oportunidades de liderança feminina foram suprimidas sob domínio estrangeiro.
Ao relatar essa saga, A Mulher Rei devolve às guerreiras um espaço simbólico que lhes foi negado por séculos. Mesmo utilizando licenças artísticas, o filme reacende o interesse por uma história rica, complexa e essencial para entender a formação de identidades no continente africano.
